quinta-feira, 29 de agosto de 2013

sobre inocência

Escrevi o texto a seguir há algumas semanas por conta de uma reflexão gerada por causa de um texto da Lola. Ele não segue estritamente o que foi abordado no texto dela, mas dialoga com a temática.

[TW: este é um post que fala sobre abuso sexual]

Eu sei que há um grande número de pessoas que possuem uma concepção específica de estupro que geralmente se restringe a imaginar que há o uso de violência física para que ele aconteça. Essas pessoas muito comumente interpretam estupro como, basicamente, penetração forçada. O que é engraçado (não), porque existem muitas formas que são, digamos, sutis de estupro, que acontecem por motivações misóginas diferentes, perpetrados contra vítimas diferentes. Nos abusos que eu sofri durante a vida não houve penetração forçada, e eu não os considero menos graves por isso, nem vejo como deixam de ser abusos sexuais (e você se surpreenderia com o número de mulheres e outras pessoas trans que já foram vítimas de abuso).

Existe uma infinidade de pessoas que não sabem o que é estupro. Existem até mesmo pessoas que foram abusadas e não perceberam isso. Existe uma infinidade de homens que já estupraram e "não sabem". Mas uma coisa deve ficar clara: este "não saber" tem absolutamente nada a ver com inocência ou ingenuidade por parte deles.

Quando um homem "não sabe" que transar com a namorada dele quando ela está bêbada é estupro, ele não é apenas um cara ingênuo. Ele está simplesmente assumindo (conscientemente ou não) que não há necessidade de se adquirir consentimento explícito da namorada dele para transar com ela. Ele está a tratá-la como se tivesse passe livre ao corpo dela em tempo integral por ser seu namorado, ou seja, como algo que é de propriedade dele. Ele não é ingênuo por "não saber" que a está estuprando — nem de longe, acredite — e o que ele fez não deixa de ser estupro.




Se um homem trata a satisfação de seu desejo sexual como uma obrigação da esposa e essa mulher só cumpre essa suposta obrigação sob qualquer tipo de pressão, coação, ameaça ou chantagem (e mesmo que eu considere óbvio, acho válido lembrar que usar "a vontade de Deus" como pretexto pra transar é coagir uma pessoa a transar), quando há ato sexual, é estupro. Esse homem pode "não saber" que isso é estupro, ele pode realmente achar que é obrigação da mulher dele transar com ele. Isso não faz dele uma pessoa inocente. Porque ele ignora (intencionalmente ou não) que essa mulher tenha o direito de se negar a transar, ou simplesmente ignora (intencionalmente ou não) que ela tenha direitos, nega esses direitos, assim como a sociedade nega e vem negando desde... sempre?


Um homem "não saber" que está estuprando alguém é completamente diferente de ser inocente. Porque este "não saber" implica numa série de coisas (inclusive no fato de muitos homens terem uma concepção deturpada e extremamente tendenciosa do que é estupro). Basicamente, um homem "não sabe" que é estupro se ele vê outras pessoas (mais especificamente mulheres e outras pessoas vítimas de misoginia) como inferiores, detentoras de menos direitos, como propriedade ou acha elas devem algo a ele.


A misoginia gritante nas percepções citadas acima podem ser invisíveis para esse homem ou não, e podem se resumir, basicamente, ao fato de que ele é machista e/ou misógino, simplesmente porque hello, olhe à sua volta e veja como a nossa sociedade cria os homens cis.

Nós sabemos que não é como se todo estuprador tivesse transtornos mentais, de forma alguma (mesmo que muita gente trate abusos sexuais através dessa perspectiva misógina e capacitista, como algo que só "monstros psicopatas" fossem capazes de fazer). Muitos homens estupram porque acham que tem quem mereça sofrer estupro e dizem isso explicitamente. Outros homens sabem que estão estuprando e negam que isso seja errado ou que tenham estuprado.

Os homens que supostamente não sabem o que é estupro, assim como todos os outros, nasceram numa cultura misógina que os ensinou que mulheres são pessoas que estão habitando o planeta pra atender aos desejos deles, quer eles conscientemente pensem assim, quer isso esteja sutilmente enraizado em suas mentalidades por conta da educação que receberam. Eles não pediram pra aprender dessa forma. Isso os isenta de serem machistas e misóginos? Não. Não foram eles que inventaram essa ideia de que mulher é depósito de porra. Isso os isenta de tratá-las como tal? Não. Eles não sabiam que o consentimento deve ser explícito sempre porque ninguém explicou o óbvio. Isso os isenta de um estupro cometido por eles? NÃO.

Se o cara "não sabe" o que é estupro, se ele "não sabe" o que configura consentimento, ele já é uma pessoa perigosa. Porque se ele tem idade suficiente pra transar, mas não sabe como respeitar a vontade alheia, ele é uma pessoa escrota que provavelmente vai ultrapassar os limites que respeitam a autonomia de outra pessoa — vai estuprar. Depois de estuprar alguém, um belo dia descobrir o que configura estupro e quão horrível é o que ele fez não é mais que sua obrigação (na verdade, a obrigação dele é perceber isso antes de estuprar). E não, ele não é inocente por ter descoberto a verdade. Não, seu arrependimento não muda em nada o que ele fez. Não, seu arrependimento não me obriga a perdoar. Não, o fato de eu não perdoar não faz de mim uma pessoa reacionária.

"Não saber" o que é estupro já é uma concepção violenta — a de que se tem direito ao corpo alheio independente da vontade das pessoas donas desses corpos. Não se tem. Assumir isso, mesmo que de forma inconsciente, é e absurdamente asqueroso e violento. E não ter a consciência dessa violência não isenta nenhuma atitude violenta perpetrada contra outra pessoa.

Eu considero perfeitamente possível que pessoas possam se regenerar, mas considero abuso sexual algo delicado (pra dizer o mínimo) demais para ser debatido desta forma, com foco em estupradores e em sua possibilidade de regeneração. Não porque corrigir essa educação misógina dada a eles não seja importante — ao contrário, esse é um objetivo. Mas porque dor que acompanha uma vítima de abuso pode durar talvez por um período de uma vida inteira, e são essas vítimas de abuso que, além de terem passado por isso, não recebem o devido apoio, isso quando não são acusadas de mentirosas ou de terem causado o próprio abuso. Elas não têm obrigação de perdoar seus abusadores, assim como ninguém tem (apesar de poderem, se de fato quiserem, mas isso definitivamente não é uma obrigação), e as circunstâncias da vida pessoal de quem abusa nunca poderão ser uma justificativa pra um abuso cometido, porque não existe — não existe mesmo — nenhuma justificativa para estupro.

 Se for mesmo necessário citar outra obviedade: se arrepender e pedir desculpas não cura a dor de quem sofreu a violência. Um estupro não é um erro que se possa remediar pedindo perdão. Os traumas que uma vítima de abuso sofreu (e sofre) não somem quando o estuprador se arrepende. E estupradores não precisam desse apoio — não pela suposta dor e culpa que sentem por terem estuprado, e não quando nossa sociedade já opera pra defendê-los a todo custo. Vide: todas as vezes que uma vítima de abuso que fez uma denúncia foi acusada de "arruinar" o futuro de seu abusador, ou abusadores.

O fato é que o "futuro" de estupradores, e os sentimentos deles, precisam parar de ser tratados como mais importantes do que o estrago que eles causaram nas vidas de suas vítimas.

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